segunda-feira, 28 de outubro de 2013

UMA MOEDA, OUTRA FACE

─ Quinzimmm... Quinzinhoooo... ─ Foi o chamado. O menino pré-adolescente rosnou de volta: ─ Joaquim! Não se deu ao trabalho de gritar a reprimenda, ouvido ou não, ele não seria atendido na exigência que já devia beirar uns 5 ou 6 anos. Não bastava o terem feito eterna miniatura do pai dando-lhe o mesmo nome, puseram a abreviação ridícula de Quinzinho. Era o apequenamento da miniatura. O drama é que apelido pega, quanto mais quiseres te livrar dele, mais gruda em ti como tatuagem mal feita e borrada que se odeia, mas não tem jeito de tirar. Nem sequer era parecido fisicamente com o pai e muito menos na maneira de ser. Não era o mais velho, onde poderia se achar algum tipo de explicação, como o tão esperado filho e essas coisas bobas que nem sempre traduzem um sentimento verdadeiro. Era o caçula muitos anos mais moço que o irmão próximo. Sem nem entrar no mérito que Joaquim era um nome prá lá de ultrapassado e que sempre o fazia passar vergonha. Os colegas tinham nomes como Alberto, Paulo, Gustavo e ele precisava dizer entre dentes o malfadado Joaquim. Coisa de velho, ruminava. Gostava do pai. Quem não gosta? Ama-se até um mau pai, pelo menos enquanto a consciência não está totalmente desenvolvida, precisava fingir que não gostava para mostrar sua rebeldia sem perdão. Isso dava um trabalho danado, era preciso ser respondão, tirar notas muito baixas, criar situações para levar umas boas lambadas ardidas (o pai era de antigamente igual ao nome) e outras coisas difíceis de serem feitas quando não nascem espontaneamente. Aos poucos, conforme crescia, foi se isolando, assim não precisava ouvir o chamado- punhalada no ouvido. Só não conseguia se livrar da mãe que insistia com o apelido. Em torno dos 17 anos resolveu se conhecer, ou melhor, conhecer o significado do nome estigma. “Joaquim: Surgiu no hebraico como Jehoiachim, que quer dizer estabelecido por Deus (Jeová). A partir deste dia estabeleceu o que considerou sua real filiação e deixou de ser o filho do “seu” Joaquim para ser o exaltado por Deus. Aliviou sua alma, nada estaria acima disso. Acreditou demais nessa salvação, muito além da conta. Foi adiante e descobriu outras coisas que também introjetou: Joaquim: Que ser independente e escolher seus próprios projetos, decidir sozinho e trabalhar sendo o seu próprio patrão. Com espírito pioneiro e desbravador, é sempre muito honesto e leal. Gosta de desafios intelectuais. Quer ser ouvido e sua maior recompensa é ser elogiado em suas habilidades e atitudes. Era isso mesmo que ele queria, caía como uma luva e foi fácil começar a exigir que o respeitassem, foi dizendo de cenho apertado que não atenderia quem o chamasse pelo apelido indigno de um filho de Deus. No início não deram muita importância, aos poucos foram obrigados a esquecer o carinhoso Qinzim. Se fazia de surdo quando a mãe o chamava assim e depois passou a dizer palavrões que ela nem conhecia o significado. Chegava a cortar pela metade a palavra quando pelo hábito começava a chama-lo. O pai ignorou e como quase nunca o chamasse não houve problema algum. Com os irmãos foi mais difícil, muito olho roxo e muita cara amassada rolou até que eles desistissem. Achavam uma burrice, afinal Joaquim não é um nome sonoro e gostoso que caracteriza um menino do século XXI, Qizim era o “canal”. Joaquim se fortificou, aprendeu que podia mudar as coisas que não o agradassem. Foi para a academia e desenvolveu músculos, socos, em 1 ano era um possante rapaz que inspirava respeito só de olhar. Ninguém se metia com ele, sabiam que viria bomba e nem mulher de milico gosta de apanhar até sangrar a cara. Ele não tinha piedade, marcava seu território a ferro e fogo. Tinha uma missão e a faria de qualquer maneira, era seu dever diante de Deus. Atingiria seus objetivos embora não soubesse quais seriam, isso era de menor importância. Descobriria. O que valia era o andamento da conquista que considerava respeito. “Os “Joaquins” aprendem com os próprios erros e suportam melhor a pressão física e mental do que a maioria das pessoas. Procuram amigos com interesses semelhantes, por isso não são muito sociáveis. Geralmente trabalham para si mesmas, pois não gostam de receber ordens, quando muito atuam como administradores ou gerentes, pois preferem dar as ordens. São em geral proprietários de seus negócios, ou então são aqueles que os gerenciam. Autoritarismo, presunção, dominação ou mania de exatidão, são fatores negativos do portador deste nome. Quando são reprimidos por algo se tornam tristes, ressentidos e limitados. Obter sucesso na vida é fácil quando colocam em prática suas próprias ideias e realizam seus próprios planos”. Se era tudo isso por que o pai não o respeitava devidamente? Por que o pai não desenvolvera sua potencialidade plena e se resignara a ser mais um funcionário público sem expressão? Esta limitação do pai fazia com que ele mesmo se limitasse. Todos os “Joaquins” tinham o dever de corresponder à imagem. Não via isso? Os aspectos negativos envolvidos não lhe diziam respeito, afinal era um predestinado de Deus e nada de ruim o tocaria. Depois de resolvido o problema do apelido, se atirou aos estudos, era evidente que precisava ser o primeiro da turma por mais difícil que fosse. Uma a uma as etapas foram vencidas e o vestibular foi ultrapassado com facilidade, era Joaquim. Arredio, de poucas palavras, mas gestos de comando e olhar furioso. Amigos não eram necessários, mais tarde provavelmente quando precisasse de contatos para que sua vida profissional seguisse a linha traçada. A solidão o alimentava bem como uma raiva cega e surda do mundo que lhe devia respeito. As coisas estavam neste pé quando conheceu a Mariana. Era uma moça de cabelos ao vento, pernas que sabiam correr e mãos em constante movimento. Gostava de falar alto, de fazer amigos e de curtir sexta-feira com grupo de amigos em algum boteco qualquer para estudantes. De preferência alternando os amigos, deixava mais dinâmico, dizia. Entrou na faculdade na metade do semestre vinda de outro estado. Sabe-se lá por que Joaquim se encantou. Não tinha nada a ver com ele e no início achou inconvenientes as piadas que interrompiam os professores, com o tempo (tempo bem rápido) passou a rir para dentro, ela era mesmo irresistível. A necessidade de conhecê-la levou-o novamente a pesquisar nomes onde encontrava seus tesouros. Mariana: “Muito ligado a família, e emotivo costuma exagerar nos seus cuidados e corre o risco de sufocar as pessoas que ama. Tem muita energia e por isso deve sempre manter-se ocupado com alguma coisa. Nos relacionamentos amorosos ou mesmo de amizade, quando se magoa, procura se recolher para dentro de si mesmo e só sai quando recebe um pedido de perdão. Um bom conselho seria aprender a controlar seu temperamento e deixar as pessoas que ama mais na delas”. Era certo que ela não conhecia a própria alma, aquela dinâmica de extroversão era uma fachada e ele a ajudaria a se descobrir sem que os aspectos negativos viessem à tona. Ajudando-a neste encontro reforçaria seu próprio destino de aceitar desafios e de receber elogios que receberia friamente sendo eles apenas reconhecimento de sua competência. Mariana nem sequer prestou atenção nele e aos poucos foi se incomodando com aquele “nerd” importuno a assediando de forma tão fria que a vontade era de vestir casaco e sair correndo. Por algum tempo apenas sorriu gelado para ele, não era mal educada e todo mundo entende sorriso sem graça. Ou não? Joaquim começou a questionar o quanto tinha sido contaminado pelo Quinzim que a força de seu nome, seu âmago não derrubava as barreiras da menina boba que gargalhava com todo mundo, menos com ele. A falta dos elogios do pai, só podia ser isso. Mesmo quando passou tão bem no vestibular ele apenas lhe dera um tapinha nas costas dizendo “é isso aí, Quinzinho”. Total desrespeito. Insistiu junto à Mariana como pode e aguentou. Os dias passavam e dentro dele crescia a raiva descomunal que naturalmente ele não expunha. Ela se desenvolveu a ponto de não poder mais encarar os irmãos e a mãe que era também uma grande culpada: deixará o pai lhe dar aquele nome idiota. As notas foram despencando e não era mais o primeiro da turma, não conseguia se concentrar nos livros, o rosto de Mariana rindo dele, debochando. Tentava se segurar em algum valor guardado do Joaquim, nada havia a segurar, Deus se calara. Estaria isso também estabelecido? Há carga em ser o preferido do Senhor? Qual era a missão que precisava enfrentar agora para retomar seu caminho divino? A resposta estourou numa madrugada de temporal entre raios e trovões. Recomeçar. Esta era a verdadeira forma de matar o Joaquim torto, com marcas de segundo, ele depois do pai, ele não o único. Só havia um jeito de ser o primeiro, os reis sobem em majestade quando deixam de ser príncipes, apenas um pode ser rei. “O rei está morto. Longa vida ao rei”. Cheio de sangue do pai nas mãos, não sentiu como se o rei estivesse morto e muito menos que fosse ter longa vida. Sentiu um gelo subindo pelo peito e estraçalhando os últimos sentimentos existentes. Até José teria servido, todos os nomes ou qualquer um, menos em nome do pai. Vana Comissoli

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

ABANDONA-ME

Ao meu amigo anjo, Arthur que das estrelas está me olhando junto com sua turma que não toca harpa, mas um bom rock da pesada. Briga comigo! Estás aí parado, com esse sorriso feito de silêncio, tão plácido e tranquilo. Apenas sorris, sem me ver. Teus olhos mudos, como que enxergando minha alma que eu não conheço. Esqueces o tormento do meu pensar. Levanta e vem brigar, que eu estou armada até os dentes, vestida de amazona e montada no meu cavalo castrado. Sei, não vens de covarde que és! Quantas vezes me botei na tua cara riscando de sangue essa tua felicidade imensa em não fazer nada, só para ver se te sacudia um pouco. Ah, que te odeio porque não lavaste a louça e dormiste como um bebê enquanto eu precisava correr, pensar e sentir dor. Ah, anseio que morras, pois conheces a vida e a aceitas, enquanto eu me debato na incompreensão de ser gente. Pareces surdo. Não ouves o meu delírio? Não respondas, bem sei que ouves. Tu foste o único a compreender, vi isso no lago silencioso do teu olhar. Tu me mostraste minha mágoa e minha raiva, permitindo que elas tomassem conta de ti e gritando comigo. Ficando tão terrível que me obrigaste a calar em choro desesperado enquanto me batias. Tu fizeste o que nenhum amor fez comigo. Trocaste de lugar: tu eras eu, e eu... Eu nunca consegui ser tu. Fizeste isso para me dar alguns instantes de atormentada paz, a única que me era possível. Roubaste minha culpa e minha dor para que eu pudesse dormir. Nunca me disseste nada, fizeste em silêncio, embora teu silêncio soasse em mim como uma orquestra inteira executando um “Aprendiz de Feiticeiro”, crescendo em cada pesadelo meu. Fizesse esse gritante silêncio para não me ofender. Sabíamos nós, que eu, a grande ofendida, não me entregaria jamais ao descanso proporcionado pela partilha. Eu precisava seguir sozinha meu caminho de tortuosa agonia. Não sorrias assim, como quem foi pego roubando. Como eu podia dizer que sabia e estragar toda a validade do nosso jogo, do nosso brinquedo com a verdade? Precisávamos fingir por minha causa, por mim, que nunca soube viver em paz. Sei que me fingia de burra e dizias que eu não era, para em seguida me xingar de estúpida, reforçando o meu teatro. Assim eu poderia continuar gritando e quebrando cinzeiros que se espatifavam no chão. Lembras? Eu dizia para quem quisesse me ouvir que, não eras um homem e teu corpo não despertava em mim nada além da obrigação. Calavas, como sempre, deixando que o veneno saísse pela minha boca para não me matar por dentro. Deixando, porque fingias dormir enquanto eu acariciava teus cabelos. Nem te mexias e assim, o carinho saía pelas minhas mãos e não se estrangulava dentro de meu peito. Eu berrava que não era louca. Tu que era impossível de se conviver. Tua voz, vinda de paciência imensa, me dizia: - sim, és louca! Em seguida me abraçavas chorando. Às vezes, quando eu podia ouvir, me ensinavas que louca era minha mãe, que eu não fosse lá, pois voltaria igual a ela, pior ainda. Eu, no entanto, precisava ir. De que outra maneira alimentaria a tortura da minha infância, do estupro que meu pai me fez porque eu acompanhava minha mãe em fugas nas tardes de sol e chamava o amante dela de tio, abraçando-o porquê dava-me caramelos. Balas de soda, tão boas de ferver na língua! Não sorrias assim como se isso fosse brinquedo e não importasse nada na sua magnífica importância, porque bem sei que não importa. Tu me mostraste isso na constância da tua presença. Eu podia te odiar porque começaste a beber e tomavas um porre a cada fim-de-semana. Bem sabes como odeio que bebas por mim, para poder continuar calado o resto da semana. Abandona-me! Não te suporto porque podes ter mil mulheres e delas foges apenas para me atormentar com essa fidelidade gosmenta e imprescindível. Odeio-te porque me engravidaste e eu tive que carregar a barriga sozinha, enquanto continuavas a esperar. Esperar o que? Se apenas eu podia aguardar uma mudança nessa tua passiva ansiedade por mim. E tem mais, o filho, amorosa ironia, teve a tua cara. Odeio-te porque não me ferves o sangue e não me fazes rolar pelo chão com as minhas pernas, sempre tão apertadas, forçadamente abertas e meu corpo fechado por essa vez, exposto. Quero que morras, porque tens cuidado comigo e finges que acreditas na minha falta de tesão enquanto me trepas com delícia e carinho. Por que não me machucas, não me viras de costas para me penetrar de horror? Não quero cozinhar e jogo as panelas no chão. Quebro os pratos em seguida. Então cozinhas - merda, como o fazes bem! - Sento-me à tua frente e mastigo com furioso prazer. Antes, porém, varreste os cacos, guardando os pedaços do meu jarro predileto. O primeiro a espatifar-se, para, numa madrugada qualquer, restaurá-lo. Mexe-te, homem, vê se trabalha, faz alguma coisa! Que me importa se o jornal fechou! Eu sei que a culpa é tua, és um frouxo e muitas vezes preciso bancar o teu cigarro. Enquanto isso desistes e recomeças sabendo que eu não posso parar, é a única maneira de poderes fazer tudo que te dá vontade. Dormes. Como dormes! Eu preciso levantar e viver um dia horrível, no entanto, as plantas só vicejam contigo, as minhas morrem, afogadas ou secas. Hoje nem sequer retrucas, resolveste não me acompanhar dessa vez, te fechas e eu que me dane. Aproveitarei para dizer que também te odeio porque todo mundo te acha sensacional com tuas ideias silenciosas e perfeitas, mesmo que apenas abanes a cabeça em concordância a alguma coisa dita. Olho-te e vejo o diabo que és apesar de tentares me iludir com tua aura de luz. Eu não vejo nada! Isso sim é loucura: ver o que ninguém percebe. Eu não entendo e só tenho a ti para odiar, por isso odeio o mundo inteiro. Agora subimos no carro. Claro que arrumaste mal a bagagem, não vejo bem onde, mas sei que, ou reorganizo tudo, ou ela virá abaixo. Eu começo com raiva a viagem e dirijo, já que faço isso melhor do que tu. Afinal chegamos. Dirigi tão bem que o carro ficou aos pedaços lá na estrada. Responde-me, responde por inteiro uma única vez, desfaz esse sorriso idiota e fala: - Por que tiveste que morrer bem agora? E só agora quando consigo entender tudo e não sorrirás mais para mim, que bem sabes, te amo tanto! O que ninguém vê, eu vejo: te sentas por sobre o teu corpo e teus mansos olhos são brasas vivas. Falas, te ouço tão bem como sempre. - Querida, mas foi só por isso que eu vivi! Vana Comissoli

CONFESSO QUE APRENDI - Contigo

Aprendi... A ouvir os passos da noite sentindo os pés no chão. A jogar no fogo os véus do pudor infecundo. Aprendi contigo que podemos pensar que não somos deste mundo. Somos pássaros, astronautas, filósofos e artistas, mesmo quando a vida nos chama de ilusionistas. Aprendi que mão na mão, é carinho. Não tem idade, nem feição. Do cume de altos montes, teus braços ao céu erguidos, joguei à fome dos inválidos, minha vergonha já mastigada. De todo o suco, amputada. Joguei aos porcos, o chorume dos repolhos podres, com que me alimentei, depois de me teres ensinado a cor do sorvete derretido e dentro da tua boca, sorvido. Aprendi que a noite também é dia. O dia, na noite se esconde, quando o cansaço sacia o desejo do meu corpo no teu. Aprendi que rir alto, não faz mal. Traz inebriante alegria nas brincadeiras de nós, crianças, para sempre baldias. Tu me trouxeste, em grandes braçadas, o despertar da vida latente que em mim, só ardia. Brasas que eram a perderem-se no cinza graúdo de meus dias. Gosto de chocolate amolecido, terra de sal e de azeite, nas dobras de teu aconchego me mostraste. Ostras, calamares, cogumelos bravios, ondas dos sete mares. No meu ventre derrubaste. Em vestido de festa, transformaste a nudez de meu seio. A sisudez, o aviso, o não faça, liquefizeram-se na tua risada escarlate. Da cor de teu coração que, entre beijos, me doaste. Nos porões, os ratos ainda gemem, soam seus ruídos mesquinhos. Não são ratos, meu bem, mas passarinhos. Recolheste assim, meu medo em abraços. Refeita e nua, reconheço a vastidão do que me deste. Doce, tropical, ardente, a visão onipresente da vida em mim pulsando. Te confesso, aprendi, a amar tudo aquilo que vivi. O bem e o mal, a hora boa e a hora torta, o conchavo e o concílio. Te confesso, em ti, eu vivi. Se partires, pela porta entreaberta, hei de chorar, estou certa, mas não lamentarei nem sequer a saudade que amargarei porque o vivido jamais será esquecido. Meu peito, amornado para sempre, te carregará, preciosa dádiva, inesquecível presença, das ousadias que ousei. e do amor que roubei Vana Comissoli

A ÁRVORE DO MUNDO

Suo. Há duas horas suo. Mourejo sob esta enxada que me enche os dedos de bolhas aquosas, enredada em minhas ramagens que vicejam pornográficas embaixo deste sol úmido. A profundeza do buraco está a contento, já posso ver os restos de adubo com que o enriqueci. Preciso de uma terra uterina e gorda para receber alimentar e criar. Tudo foi como sempre: um amor desentupido, canal aberto para as delícias do tocar e ser tocado. O prazer, fartura de tesão, pernas, braços e bocas abertas. As mudanças, me lembro bem, coincidiram com a vinda de minha irmã caçula para morar conosco. Òrfã se descobrira no enterro duplo de pai e mãe que cumprindo promessa, tomaram juntos uma espumante batida de banana com veneno de rato, agradável até ao mais convicto suicida. Acharam que a filha temporona já estava bem vivida nos seus completos dezessete anos e deram por finda a tarefa de se preocupar com outra coisa além deles mesmos. Há alguns anos não convivia com Belinha, para mim ainda era aquela menina mimada e birrenta de oito anos que eu deixara em casa e seguir o recente marido para outra cidade. Deparei-me em escandalizada surpresa com uma mulher cheia de trejeitos e abundantes seios. Olhares capciosos ou capituosos, a boca vermelha de batom da manhã até a noite. Muitas vezes a espiei dormindo, acreditei que ainda assim estivesse em vermelho Lancôme. Não cheguei à conclusão alguma nesta idade sempre se tem boca de flor. Não me agradava a idéia de herdar uma filha prestes a entrar na idade da cama desvairada, enquanto eu mal chegava aos trinta e cinco anos. Promessa descabida por promessa descabida também tinha a minha: jurara à mamãe que olharia a garota se alguma coisa fúnebre acontecesse. Tenho uma raiva danada de mamãe por isso, organizara sua vida para sair a saracotear com meu pai na morte me deixando esta herança. O sexo era a chave-mestra da relação dos dois, acho que a escolha da partida se deveu mais à brochura de papai e a secura menopáusica de mamãe do que por qualquer outra razão. Belinha passava os dias me atordoando com canções nebulosas que eu jamais ouvira, berravam amores de fogo e paixões descabeladas. Saía do banho com os cabelos pingando sobre a camiseta branca e tinha a péssima mania de não usar sutiã, a transparência de bicos e redondezas espalhava-se pela casa junto com o perfume doce e enjoativo que usava. Arrebanhava as saias já curtas para carregar suas tralhas de manicura e outros que tais tão desimportantes quanto estes. Eu me esforçava ao máximo para ensinar-lhe o recolhimento que uma menina deveria ter: a elegância do pudor e a sensualidade existente num equilibrado cobrir-se. És uma velha ultrapassada, cheia de preconceitos e bobices, me insultava. Meu marido Hugo, me ajudava a corrigi-la. Cobria seus peitos expostos até com as próprias mãos se não houvesse um casaco ao alcance. Enlaçava seus ombros vestindo-os em abraços paternais. Espremia seus cabelos deixando a água pingar nos ladrilhos brancos de minha cozinha, cuidava dela carinhosamente. Um carinho a que eu não podia ceder e era grata pelo despojamento dele. A desgraçada respondia com retorcer-se e dar risadinhas que reconheci sacanas. Por esses fatos é que lembro bem quando a delicadeza de Hugo começou a mudar e, as implicâncias apareceram. Minha comida tornou-se insossa ou salgada demais para ele. Percebia cada grão de pó escapado de minha vassoura distraída. Reclamava dos lençóis engomados que lhe picavam a bunda, das camisas que nunca mais estiveram bem passadas. Por fim descambou para os ensinamentos de que eu precisava fazer as coisas deste ou daquele jeito: eu fazia tudo errado. Belinha ria das admoestações do cunhado, franca ou sorrateira, porque muitas vezes a vi espiando as reprimendas com seu olho ardido. Tive certeza que se divertia às minhas custas. Uma coisa estranha nasceu no meu peito. Numa manhã de verão, quando estávamos os três prontos para curtir um domingo na praia, o olhar de meu marido escorregou no biquíni indecente de minha irmã que nem se dava ao trabalho de disfarçar, já mostrava tudo, seios e bunda. Não pude criticá-lo só um cego não enxergaria, embora, tenho certeza, sentiria seu cheiro de cio. Achei que era um mal-estar passageiro e que eu estava exagerando. Na porta de casa, Hugo puxou a alça de meu maiô que voltou num estalo ao ombro. Denise, belo maiô, disfarça bem a barriguinha e deu-me um tapa no traseiro. Tremi como gelatina. O parto da dor continuou a cada dia. Algo apertava meus órgãos a partir do coração, espremia meu estômago, mastigava o fígado. Fui ao médico, poderia ser um câncer, melhor prevenir do que remediar, eu pensei. O dito doutor de merda disse que estava estressada esgotamento nervoso. Toma pílula, dorme bem, toma pílula dorme mais, atravessa o dia numa zonzeira, mas depois tudo passa, não é nada, logo sara. Hugo e Belinha criavam mais e mais afinidades. Passavam horas jogando xadrez, este jogo idiota e difícil que só os desocupados têm tempo para aprender. Quando ela ganhava, nem sei como, meu marido cultivava as pedrinhas brancas e negras há muitos anos, seu riso se espalhava alto e gargalheante pela casa. Tinha um estoque infindável de riso, a infeliz. Hugo, para comemorar, a girava no colo e ela gritava ais parecidos com os dos gatos nas noites de caça às gatas desavergonhadas. Durante uma dessas comemorações senti a primeira agulhada de dentro para fora e surgiu um ponto verde e doloroso do lado do pescoço. Uma espinha inflamada ─ diagnosticou o tal médico idiota ─ não é nada, logo sara. Todos os dias eu examinava o verde que vicejava. Examinava também a minha raiva que vicejava. Apareceu a primeira folha, a segunda e um ramo inteiro, foi um alvoroço, até a sonsa da minha irmã se preocupou. Quando a ramagem já se espalhava pelo chão e eu não precisava mais de vassoura, meu marido expulsou-me do quarto, fui para a cama de Belinha. Não havia outros quartos na casa sobrava o meu lugar para ela dormir. As noites se transformaram numa sucessão de gritos, uivantes meus, orgásticos os deles. Foi nestas noites que planejei tudo. Com paciência me preparei deixando meus ramos arranharem os móveis e quebrarem os enfeites da casa que eu não precisava mais. Esperei que mergulhassem no sono da safadeza e entrei na ponta de minhas raízes, as coifas se encarregariam de abafar ruídos denunciatórios. Amarrei os tornozelos de Belinha com o cadarço dos sapatos de Hugo. Ela nem se mexeu. O sono satisfeito é um bom companheiro, eu ainda me lembrava. Passei um cinto em torno dela e atei à cabeceira. Ela deve ter pensado que era um abraço amante porque gemeu baixinho e disse adormecida: Mais tarde, meu bem, mais tarde... Hugo dormia de barriga para cima. Por longos momentos fitei seu membro lasso, lambuzado, nojento... Saudoso. O sereno cobriu minhas folhas, pingou sobre o ventre de meu homem, do homem de Belinha, que se retorceu sem mudar de posição: estática e maldita. Eu, tão volátil e tão mutável, ali. Ali. A faca estava bem enfiada nos meus liames, na minha ira, no meu amor rechaçado e ardente. Os bicos dos meus olhos cresceram desmesuradamente em segundos. A faca caiu no chão e enterrei os dois bicos de aço no peito desprotegido. Torturei-me dentro da carne, trilhei caminhos que desaguaram em rios de sangue, espetei o coração, furei o fígado, estraçalhei os miolos, cavei os olhos e assinei, no seu umbigo todo o meu desespero. Não houve grito. A morte, no sonho, é doce e generosa não maltrata com dor e consciência. A morte é um alívio quando não sabemos viver. Uma perda para quem sabe, quem crê como eu. Adeus. Adeus a tudo. Sacudi minha irmã, bati nela cheia de tapas e de horror. Essa sentiria cada segundo de minha agonia. Ao se deparar com minha verde cabeleira a encobrindo uivou como lobo nas estepes geladas do prenúncio do mal. Eu não gosto de lobos, eles são maus. Minha risada enroscou-se em meus cipós, enredou-se nos pelos pubianos de Belinha, apertou sua garganta branca. Não, eu não estrangulei, era muito pouco. Os pássaros de chamas de meus olhos afiaram as garras e os bicos, agora curvos como foices, a rasgaram desde os pés até a testa lisa. Fizeram com cuidado e atenção. Eu não queria a morte rápida e compassiva. Eu queria o horror e a penitência. Esperei a certeza de que Belinha ainda estivesse lúcida para cravar em seu peito todo meu ódio. Não poderia matá-la antes de assistir sua tortura merecida. Apenas uma estocada, tão frágil o meu amor. Encostei-me à parede, senti minha seiva empedrando. Enterrei-os com grande esforço, difícil é para as árvores manejar pás e enxadas. Enchi a banheira e despejei quatro caixas de húmus, uréia e adubo mineral, deitei-me naquele caldo de cultura, me conservariam em boas condições durante os meses que o adubo orgânico levaria para enriquecer a terra. Suo. Já há duas horas mourejo sob esta enxada que me enche de bolhas aquosas, enredada em minhas ramagens que vicejam no sol úmido. A profundeza do buraco está a contento, enxergo, no fundo, o resto de adubo com o que enriqueci. Preciso de uma terra gorda e uterina para receber e alimentar. Desabrocharei em flores e frutos negros e pássaros de rapina encontrarão guarida em meus braços.

domingo, 20 de janeiro de 2013

A SENHORA E O MENINO

Sob o viaduto agasalham-se os cidadãos rejeitados pela cidade que tem fome. Uma dupla chama a atenção: uma mulher muito gorda tem no colo um menino de idade entre cinco e dez anos. Difícil definir. Ela está recostada no concreto com o menino atravessado sobre as pernas. No sono dele, a cabeça e um braço escorregaram para fora do colo. De longe o menino viu a imensa figura recortada pelo clarão proveniente do poste da rua, embora alguns galhos do jacarandá que o rodeia coloquem manchas escuras sobre ela. Arrastou o passo, os pés nus limpando o chão. Das Dores não era de brincadeira e o menino não cumprira sua promessa. Não fora feliz. Das Dores viu o moleque retardar-se. Buscar uma lata amassada e volutear com ela. Esfregou os pés saídos das chinelas rotas com vagar, como touro que se dispõe a uma peleia. Ajeitou as nádegas colossais sobre o exíguo muro e esperou. Rafael percebeu o tapete de flores lilases, quase luminosas, devido aos olhos que se escondiam procurando desvios. Não teve tempo de achar bonito, nem de verificar que eram flores. A mulheraça atacou-o: - E aí? Conseguiste?- Deu nada, das Dores. Todo mundo unha de fome, hoje. – A voz saiu firme que boiola não era. Ela cresceu sobre ele, a banha dos braços batendo no compasso do corpo. Rafael encolheu-se, protegendo o rosto na curva do cotovelo. A mão desceu pesada ao lado do ouvido. Junto com o baque veio um zunido fininho e o escuro. Deu uma vontade danada de entregar-se, mas ficava mal, das Dores pensaria que estava se acovardando. Reagiu. Levantou a cabeça. A mão desceu do outro lado. Chamou-a de filha da puta velha e gorda. Imediatamente ela desabou sobre a mureta e soltou o choro fácil. Rafael respirou aliviado e esfregou a cara ardida: estava tudo bem. Já passara... Já passara. - Tu és burra, das Dores. – Falava e badalava diante do nariz dela a lata vazia. – Pensa que o pessoal dá comida todo dia? Tá difícil tem um mundéu de casa sem ninguém. Um mundéu de gente com fome. É sábado, esqueceu? Ela espremeu os olhos com os dedos de unhas curtas, roídas e debruadas de preto. Foi puxando uma ladainha que saía de dentro do peito acompanhada de suspiros, de ais. De arrancos de respiração e um cheiro azedo de fumo. - Ta ruim... Ta ruim! Vive dizendo isso. Por acaso enche barriga? Por acaso não preciso comer? Tu também precisas... Embora nem tanto já que é mirradinho. Porcaria de mãe tu tivesses que não te fez grande, magrinho assim, não assusta ninguém e dificulta outra atividade que a gente queira arrumar. Não sei onde estava com a cabeça quando te peguei na rua. – Peguei de pena, ouviu? – A voz cresceu: - De pena! Rafael ouvia de cabeça baixa. Revirava as flores lilases nas quais pisava com desaviso, roubando sua luz, transformando-as numa pasta escura e úmida. O muxoxo da boca mostrava sua contrafeita concordância. Das Dores calou-se. Enfiou a mão entre os seios e coçou-se sacudindo as tetas num pra-baixo-prá cima acompanhado pelos olhos baços de Rafael. _ Quem se faz agora, meu lindinho? – perguntou puxando-o junto ao peito, aonde ele foi se chegando já de cara ladeada para não se afogar. Um rido fechando os olhos e estrelas mostrando os dentes. Passado um minuto respondeu que não se preocupasse, ele era homem e daria um jeito. Ele não tinha prometido que sem comer nunca mais dormiriam? E ela não tinha acreditado? - Claro que sim, meu pintinho. Claro que sim! – Esfregava os braços do menino, sacudia o corpo a niná-lo em pé mesmo. Rafael empurrou das Dores escapando das carnes fartas. Atravessou a avenida correndo. Um carro buzinou furioso. Afinal o outro lado. Tudo tem dois lados. A porta do bar botava uma lua clara na calçada, carregada de cheiro de fritura, de queijo derretido, do que não se ousa. A miséria. Rafael foi entrando meio espremido na parede e escorregou pelo balcão. Foi interpelado pela voz de mando: -Que é guri? Vai dando o fora! - Tio, dá um sanduba. To com fome, não comi ainda hoje. Os olhos do homem caem na cara suja, vêem os braços desamparados e os ombros um pouco mais caídos do que de costume. - Fora! – muda o tom e fala baixo: - Tem muita gente. Volta mais tarde. O moleque foi saindo devagar, pesando as possibilidades. Na mesinha junto à porta, sentava-se um velho. Acho que já tem uns cinqüenta anos, pensou Rafael, aproximou-se, pediu um troco, ganhou uma moeda. Já servia. Na rua olhou para das Dores escarrapachada no muro. A noite caíra por completo. A luz do poste tornara-se mais forte e o chão lilás parecia néon. A mulher colocara um pé sobre a mureta e era um milagre que conseguisse equilibrar-se. Estava concentrada vasculhando alguma coisa nos dedos. Rafael lembrou seu cheiro de suor velho, urina choca e sujeira entranhada. Precisava dar um jeito, ela não poderia ficar triste. Foi até a fruteira na outra esquina. Primeiro pediu e depois roubou a maçã vermelha. Das Dores gostaria. Atravessou a avenida. Desta vez não retardou o passo, chegou triunfante, a fruta escondida nas costas. - E daí, seu bosta, conseguiu? – A mulher sorria e estendia a mão. Recebeu a maçã que esfregou forte na saia. Rafael sentou-se entre as flores do chão com o olhar triunfante grudado na amiga. Mais da metade da fruta fora comida quando foi entregue ao menino. Ele deu poucas mordidas e devolveu. Das Dores limpou a boca com as costas da mão e arrotou. Rafael fez a mesma coisa. Ela declarou que o aperitivo estava bom. Ele sacudiu a cabeça afirmativamente e contou que "seu" Carlos do bar daria comida. De novo a mulheraça atochou-o no peito e embalou-o, em seguida empurrou-o quase o derrubando. Quando a lua arredondou no meio céu já haviam comido a maçã, um cheeseburger, meio cachorro quente que alguém farto colocara no lixo, duas coca-colas, um yogurte e dois goles de cachaça que bebida boa tem que ser arrematada. Os últimos petiscos foram comprados depois que das Dores vasculhou o cofre dos seios. Rafael encostou-se nas pernas travesseirosas e fechou os olhos. Ela coçou-lhe a cabeça por instantes e convidou-o a partir. Abandonaram o círculo de luz caminhando lado a lado. Ele, de vez em quando, chutando uma lata, uma pedra. Tinha colocado os tênis dois números maior que o pé, ela sempre os trazia na sacola. Caminhava balançando de um lado para outro, as coxas batendo enquanto o resto das pernas não se tocava. Às vezes apoiava-se na cabeça do menino. Chegaram ao viaduto. Ela sentou ajeitando os trapos de cobertores sob a bunda e puxou-o para o colo. Ele aninhou gostoso, enfiando o nariz no sovaco quente. Das Dores encostou a cabeça no concreto. A noite estava tépida, era bom o tempo da primavera. Do outro lado da avenida os jacarandás derrubavam suas flores em ilhas luminosas e lilases. Demoraria a dormir, podia ninar um pouco seu anjo. Mergulhou o nariz nos cabelos dele e pensou que se amanhã fizesse calor o mandaria tomar banho no lago da praça. Aos poucos fechou os olhos e cochilou, nem percebeu quando a cabeça e o braço de Rafael escorregaram para frente quase tocando o chão. Vana Comissoli

NO PRINCÍPIO...

E formou o SENHOR Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente. Gênesis 2:7 E da costela que o SENHOR Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão. Gênesis 2:22 Adão ainda estava cabisbaixo pensando no mico pago, saindo daquele jeito “nu com a mão no bolso” do Paraíso chatinho, certinho. O anjo guardava na face de porcelana (por que será que todos os anjos tem face de porcelana sem nenhuma espinha, ou verruga? Depois dizem que o Pai não tem preferências!), um sorrisinho de escárnio feliz enquanto embainhava a espada maior do que a de Ricardo coração de leão. Lá por trás das asas se vangloriava: o que estavam pensando esses miseraveizinhos se imaginando donos do Éden e filhos preferidos de Deus? Tomem, papudos, vão cantar em outra freguesia e a maçã... Terão que vender na feira. Eva, emburrada, pensava que era fácil ser mandão e dá-lhes um pé na bunda com um espadão daqueles. Foi quando voou uma borboleta inconformada com a injustiça feita e se bandeou para o lado de Adão e Eva. Pela primeira vez a primeira mulher parou para ver as cores rutilantes das asas do inseto e se deu conta que poderia ter sido uma boa sair do som de harpas enjoativas se pusesse a imaginação a funcionar. Imediatamente sonhou luz neon, grifes fantásticas que brilhariam nas letras luminosas na fachada de shopping enormes onde poderia adquirir e, melhor ainda, vender, asas de todos os matizes para as mulheres que pariria às pencas se fosse abelha. O anjo voltou para o Paraíso e ficou meditando em como seria agora sem ter ninguém para dedo-durar, podia ter sido uma ruim emplacar aqueles dois branquelos. Não teria mais a quem pregar peças de bem e mal e a coisa paradisíaca tenderia a ficar muito chata. Em seguida questionou o Pai sobre por que os tinha feito branquelos se nem sequer era uma cor original, muito mais razoável tê-los feito negro ébano para suportar o calor que teriam a enfrentar. Talvez para o castigo ser maior ainda ou estaria já meio entediado e começava a criar a primeira confusão de racismo para quebrar a monotonia daqueles anjos saiúdos que nem sabiam dançar. Adão viu Eva se requebrando toda enquanto colhia flores (o Pai foi bonzinho e deixou este colorido escapar sorrateiro para dar uma forcinha aos filhos amados). Pois Eva colhia flores, ainda não tinha inventado o tecido e precisava de algo bonito e estético que cobrisse a perseguida para os muito meninos, rola para as carolas, buceta para os à toa e vagina para os intelectuais. Como ainda não tinha inventado nada para fazer e vendo Eva se divertindo (a mulher é sempre mais criativa, logo criou a diversão), olhou as nuvens do céu que também escapavam do Paraíso pela fresta que o anjo, ocupado com pensamentos pagãos de revanche satisfeita, deixara. O vento do lado de fora da temperatura sempre perfeita, era forte e empurrava as nuvens formando desenhos. Foi assim que Adão aprendeu a sonhar vendo as formas malucas desenhadas nos céus. Assim, quase sem querer, ou dado pelo Pai, segundo algumas teorias, que penalizado pelo severo castigo, deu um jeitinho bem brasileiro de facilitar as coisas. O Pai era a sabedoria sem idade e sobre todas as idades que viriam, portanto, logo de cara já foi inventando o gérmen que, depois de maduro, seria o Brasil. Adão perdeu a desesperança e acontecesse o que acontecesse, sempre começaria tudo outra vez. Fosse dilúvio, terremoto, vulcão, enchente, explosão atômica fabricada, fome de secar tripas, matança desgovernada, guerra ou guerrilha, Adão tentaria e tentaria e tentaria novamente. Até espetado numa cruz ele falaria em ressurreição. Eva, se maquiando sobre margens plácidas declarou convicta: Espera um pouquinho que te dou uma força, Adão. Mas pega leve senão me mando com algum Moisés, ou Efrain que vai nascer ainda. Adoro minha programação de homens “barriga tanquinho” e, mesmo podre de velha, ainda caço um Gianecchini lá pelos ainda não idos anos 2000. Sou mulher, posso qualquer coisa e fora do paraíso, posso mais ainda. A borboleta, percebendo a brecha na entrada do Éden, deu um assobio maroto e a bicharada escapou aos casais para o lado de cá que já era muito mais divertido e se poderia fornicar, fofocar e ir ao cinema mesmo que dando um duro danado. Muito tempo depois, quando os dinossauros já tinham perdido a vez há centenas de anos, nasceu uma mulher de nome Maria que, dizem, veio interceder pelo lado negro da força e os esotéricos segredaram que ela já existia desde sempre e era uma borboleta. Por isso, até hoje, disse que as borboletas são a presença de Maria quando estamos lutando com Darth Vader. O anjo está até hoje morrendo de dor de cotovelo por que apesar dos esforços em mandar tudo que é desgraça para o lado humano da vida, desde chocolate mofado até crack desencarnado, as coisas dão certo no geral. Dizem que a mania de Adão acreditar e ter inventado um desvio chamado Esperança. A cobra... Que cobra? Não apareceu nenhuma! Dizem que a culpa foi dela enfeitando a maçã com sedutoras cores vermelho brilhante. Que escolha mais boba! Com tanto fruto mais suculento e saboroso, escolheu logo a maçã! Essa história de cobra foi pura invenção. Outra mania a que Adão aderiu: sempre encontrar um bode expiatório para as asneiras cavalares que faz. Com a permissão do senhor cavalo que é lindo e tão certinho que até seu cocô é redondo e não faz sujeira espalhada. O senhor Pai está lá feliz da vida com sua criação, tanto que lá pelas tantas chamou um anjo e provocou, provocou até o coitado cair em desgraça e perder o luminoso nome de Lúcifer se transformando em Satanás. Mas não foi por mal não, foi por amor, a vida seria coisa tão chata quanto o Paraíso se não houvesse um pouco de pecado por aí. O sal da vida, que sem sal só serve para quem tem pressão alta. Vana Comissoli

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

A NEGOCIAÇÃO

A tarde ia a meio, o sol se entornava pelos campos espraiando lagos ilusórios. O infinito se reconhecendo no pampa. Vazio e verde. Uma incomensurável colcha cobrindo a terra até o horizonte longínquo. Esta era a visão para a qual se abria a varanda da estância. Os dois patrões sentavam-se em amplas e confortáveis poltronas, modernidades que o Coronel Leôncio, dono da casa, trouxera da capital. O chimarrão cambiava entre eles em espaços rítmicos e a conversa variava de acordo com o intervalo das mamadas na bomba e o encher da cuia. Tratava-se de negócios, a solenidade se impunha e, a ocupação com o ritual gaúcho, propiciava tempo para pensar. Reavaliar as ofertas, sopesar os aceites. - Como lhe digo, Coronel Atelfio, o negócio é mui bonitaço, por isso lhe chamei primeiro. Somos amigos de velha data, de lenço vermelho os dois, seria descabido não oferecê-lo em primazia. – Justificava o hospedeiro rasgando-se em gentilezas camufladas pelo tom imperioso da voz, coisa de macho gaúcho quando está arriado de medo. O outro, cerca de dez anos mais jovem, tirou a faca da bainha presa à cinta e palitou os dentes fortes a deixar claro que não era chimango. - Lhe agradeço, bem vejo sua finura que, aliás, de há muito me é conhecida. A verdade é que não vim preparado para tal proposta, pensei em campos e boi. Impõe-se que me explique os detalhes da empresa. É mui grande. O coronel chamou a guria de serventia da casa, costurada ao batente da porta à espera de ordens e cujos ouvidos, por hábito ou desaviso, nada captavam. Fosse ela buscar algo de se mastigar, o estômago reclama. Carne do churrasco sobrado, ou um mogango fervido recém. Logo o anfitrião limpou a garganta fumaceada desde os doze anos por palheiros de sabor acre. Solene, pôs-se à disposição do visitante para os esclarecimentos exigidos. - O que lhe renderá essa empreitada? Sem dúvida seria difícil explicar tim-tim por tim-tim. Nem poderia descrever a alegria e o descanso que usufruíra, não é coisa que se conte. O importante era saber que se tratava de material de primeira e demandava avaliação, conhecer o preço inicial. Custara caro, muito caro: cabeças de gado, um eito de terra, fora as sementes híbridas de pasto das quais era pioneiro. Não as daria por pouco. Coisa boa, resmungou entre dentes, olhos perdido para dentro, me chegou em primeira mão. Lhe afianço: não tinha uso nenhum, a formei lentamente, dentro dos ditames da necessidade e, é claro, do retorno do capital investido. O coronel Leôncio terminou a fala batendo no taco das botas num cacoete que apenas os da casa sabiam denotar nervosismo. Os resultados bem vejo, respondeu o visitante, nas modernidades de sua estância, nos seus setenta anos rijos, no cheiro que vem da cozinha e até nessa erva uruguaia que nunca tinha provado. Excelente, diga-se de passagem. Tem gosto de sangue e fogo derramado no pampa pelos dois lados. O mais velho, dono da cuia, cevou o mate com compridas e aromáticas folhas de capim cidró recém colhido no quintal. Traziam no cerne o doce cheiro do mel da terra. Demorava-se no feito pensando nos benefícios, tão gratos, que vendia agora. Uma saudade prematura lhe trouxe um turvejar dos olhos. Reclamou da fuligem do fogão de lenha que chegara à varanda. Pigarreou, era entrado na idade. Coisa de guasca que não se mostra, coisa do Rio Grande. _ Que lhe posso dizer, Coronel Atelfio? O único motivo que me leva a lhe entregar a menina de meus olhos é a velhice e o que a carcome. Se achega sem pedir licença, me tolhendo o movimento e a prontidão. A cabrita é jovem, tem veias grossas. No más, nada tenho a reclamar. Marialva, esposa do dono da casa, entra com pratos de pé-de-moleque e rapaduras de leite. Que tão bem adoçam o chimarrão amargo que circula no sangue gaúcho. É uma mulher, percebe-se pelo cheiro de flor. Não precisa fazer trejeitos de quadris para os homens respirarem fundo e sentirem-se vivos. Atelfio examina-a de olhos disfarçados: sopesa os peitos, arredonda-se nas nádegas. Avalia o entre-pernas e, com cumprimento cavalheiro, lhe acena las buenas. Sem levantar-se. A senhora não é tão jovem, os quarenta anos a adornam, puseram brilho pela postura do pescoço e das marcas suaves em torno da boca generosa e cortante. De onde as palavras não saem audíveis, mas ferem no silêncio. A lavanda de suas saias alivia por onde passa. O útero, imparido, espera a semente. Faz-se necessária constrição. O “jovem” ajeitou o lenço vermelho, amarrado em laço gaudério, último marco de seus desatinos, dava tempo ao seu interlocutor se refazer de uma emoção que não deveria ser percebida. _ Me dê espaço para uma boa mijada, Coronel. O mate é forte barbaridade. Levanta-se atrás da fêmea. Segue seus rastros. _ Pois é certo que vá. Sabia muito bem o que estava falando. O alívio da ausência é um ar frio de minuano que varre a varanda abrindo pulmões e arrepiando a pele. O ar vem do Uruguai, galopando, lança em riste. Vem da Argentina, argenta subitus, trás na alma o gosto cortante da guerra e da solidão. Leôncio aspira fundo. Geme. Retorna a uma primavera terminal. Nessa noite o senhor da casa cobriu sua mulher como nunca antes. Ela dormiu em paz. A tratativa é lenta, como se caminha no pampa. As tardes se alongam e os homens enchem suas bexigas acostumadas à água amarga que sai da bomba. Luta e guerra. Rio Grande. De alguma forma tudo deve chegar ao fim. Felizmente ou... quem sabe? Quem sabe o cancro se recolhe ao casulo? Quem sabe a idade não rói os ossos? Quem sabe um cavalo mouro... Quem sabe apenas curva e não... Quem sabe? - Coronel, tudo que precisava saber já está sabido, me cabe lhe dar a resposta. – A voz é firme, a mão é dura, as bombachas são largas e as botas cheiram a gordura nova. A meninota da cozinha entrou, apertou as mãos, enrolou a barra da saia entre os dedos. Quem sabe rapadura? Quem sabe pão de aipim? Bons-bocados? Arcanjos? - Saia, saia que não queremos nada! – o dono da casa não pode mais disfarçar o nervosismo. Chegou a hora. Quer realmente fechar o negócio, ou melhor, seria morrer com ele? – Pois sim, Coronel Atelfio, é esperado que se manifeste. - Aceito! A chaleira tomba, água quente espalha-se pelo chão em meio à fumaceira. Os dois homens apertam-se as mãos e batem nas costas um do outro. O contrato está assinado. O vendedor sorri, a pele curtida pelo sol e pelo Minuano parece fosca e a boca logo volta a fechar-se contrita. O comprador arruma as costas arredondadas pelo abandono sobre o cavalo e penteia com os dedos os bigodes fartos que parecem ter escurecido nos últimos dias, não se vê mais as pontas brancas amareladas de fumo. - Só nos falta legalizar a venda. Como se fará isso? - Não se preocupe, amanhã mesmo chamo o advogado e encaminho a separação, depois o senhor pode casar de papel passado, que é minha única exigência. Isso sacramenta a empreitada. Não pretendo reter nem sequer a minoria de minhas ações. Vana Comissoli